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Sunday, April 22, 2007

para gostar de Rancière: o mestre ignorante

(...) Toda palavra, dita ou escrita, é uma tradução que só ganha seu sentido na contra-tradução, na invenção das causas possíveis para o som que ouviu ou para o traço escrito: vontade de adivinhar que se apega a todos os indícios, para saber o que tem a lhe dizer um animal racional que a considera como a alma de um outro animal racional.

Talvez agora se compreenda melhor, igualmente, o escândalo que faz de relatar e de adivinhar as duas operações mestras da inteligência. Sem dúvida os dizedores de verdade e os espíritos superiores conhecem outras maneiras de transformar o espírito em matéria e a matéria em espírito. Compreende-se que eles as calem aos profanos. Para esses últimos, como para todo ser racional, resta, assim, esse movimento da palavra que é, ao mesmo tempo, distância conhecida e sustentada em relação à verdade e consciência da humanidade, desejosa de comunicar-se com outras e de verificar sua similitude com elas. "O homem é condenado a sentir e se calar ou, se quer falar, a falar indefinidamente, pois ele sempre tem o que retificar, para mais ou para menos, naquilo que acaba de dizer [...] porque o que quer que se diga, é preciso apressar-se em acrescentar: não é isso; e, como a retificação não é mais plena do que o primeiro dito, tem-se, nesse fluxo e refluxo, um meio perpétuo de improvisação".

Improvisar é, como se sabe, um dos exercícios canônicos do Ensino Universal. Mas é, antes ainda, o exercício da virtude primeira de nossa inteligência: a virtude poética. A impossibilidade que é a nossa de dizer a verdade, mesmo quando a sentimos, nos faz falar como poetas, narrar as aventuras de nosso espírito e verificar se são compreendidas por outros aventureiros, comunicar nosso sentimento e vê-lo compartilhado por outros seres sencientes. A improvisação é o exercício pelo qual o ser humano se conhece e se confirma em sua natureza de ser razoável, isto é, de animal "que faz palavras, figuras, comparações para contar o que pensa a seus semelhantes."A virtude de nossa inteligência está menos em saber, do que em fazer. "Saber não é nada, fazer é tudo." Mas esse fazer é, fundamentalmente, ato de comunicação. E, portanto, "falar é a melhor prova da capacidade de fazer o que quer que seja." No ato da palavra, o homem não transmite seu saber, ele poetiza, traduz e convida os outros a fazer a mesma coisa. Ele se comunica como artesão: alguém que maneja as palavras como instrumentos. O homem se comunica com o homem por meio de obras de sua mão, tanto quanto por palavras de seu discurso: "Quando o homem age sobre a matéria, as aventuras desse corpo tornam-se as aventuras da história do seu espírito." E a emancipação do artesão é, antes de mais nada, a retomada dessa história, a consciência de que sua atividade material é da natureza do discurso. Ele se comunica como poeta: um ser que crê que seu pensamento é comunicável, sua emoção, partilhável. Por isso, o exercício da palavra e a concepção de qualquer obra como discurso são um prelúdio para toda aprendizagem, na lógica do Ensino Universal. É preciso que o artesão fale de suas obras para se emancipar; é preciso que o aluno fale da arte que quer aprender. "Falar das obras dos homens é o meio de conhecer a arte humana."


RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante - cinco lições sobre a emancipação intelectual. Tradução de Lílian do Valle. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. p 95-97

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