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Monday, November 19, 2007

Gemüt

Página 48, nota dos tradutores Valerio Rohden e António Marques:

Kant adota o termo Gemüt, do qual fornece em ocasiões diversas equivalentes latinos animus e mens, para designar o todo das faculdades de sentir, apetecer e pensar e jamais só unilateralmente, como se fez depois dele, a unidade do sentimento (equivalente a Herz e timós). Ele adota Gemüt preferencialmente a Seele (anima) pela sua neutralidade face ao sentimento metafísico dessa última. A tradução desse termo por "ânimo" e não por "mente" oferece a vantagem de não o reduzir, por outro lado, nem às faculdades cognitivas nem à atual "philosophy of mind", entendida como filosofia analítica do espírito. Em muitas traduções e principalmente entre os franceses prevalece a tendência a confundir Gemüt (ânimo, faculdade geral transcendental) com Geist (espírito, faculdade estética produtiva) e Seele (alma, substância metafísica). Segundo Kant, o próprio esprit francês situa-se mais ao lado do Geschmack (gosto), enquanto Geist situa-se mais ao lado do gênio. O termo "ânimo", que em português tem menor tradição no seu sentido especializado, tendendo a confundir-se com disposição e coragem (Mut) tem também o sentido de vida (seu sentido estético). Originalmente em latim ele teve o mesmo sentido de complexo de faculdades do Gemüt, o qual contudo o termo alemão expressa melhor: muot no ahd (antigo alto alemão) significou já faculdade do pensar, querer e sentir; o prefixo ge é por sua vez uma partícula integradora que remete às partes de um todo; daí que gemüte tenha tomado no mhd (médio alto alemão) esse sentido originário de totalidade das faculdades. A perplexidade causada pelo abuso do sentido desse termo, já denunciado por Goethe, deve-se em grande parte ao fato de o prórpio Kant pouco ter-se preocupado em aclará-lo.

KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo; tradução de Valerio Rohden e António Marques. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.

Sunday, October 28, 2007

A invenção de Morel

Estive lendo os papéis amarelos. Penso que distinguir pelas ausências – espaciais ou temporais – os meios de superá-las leva a confusões. Talvez fosse o caso de dizer: meios de alcance e meios de alcance e retenção. A radiotelefonia, a televisão e o telefone são, exclusivamente, de alcance; o cinematógrafo, a fotografia, o gramofone – verdadeiros arquivos – são de alcance e retenção.

Todos os aparelhos para fazer frente a ausências são, portanto, meios de alcance (antes que se tenha a fotografia ou o disco, é preciso tirá-lo, gravá-lo).

Do mesmo modo, não é impossível que toda ausência seja, definitivamente, espacial... Num lugar ou noutro estarão, sem dúvida, a imagem, o contato, a voz dos que já não vivem ("nada se perde").

BIOY CASARES, Adolfo. A invenção de Morel. Tradução: Samuel Titan Jr; São Paulo: Cosac Naify, 2006. p. 93 e 94

Saturday, September 29, 2007

Der Panther

De tanto olhar as grades seu olhar
esmoreceu e nada mais aferra.
Como se houvesse só grades na terra:
grades, apenas grades para olhar.

A onda andante e flexível do seu vulto
em círculos concêntrios decresce,
dança de força em torno a um ponto oculto
no qual um grande impulso se aferrece.

De vez em quando o fecho da pupila
se abre em silêncio. Uma imagem, então,
na tensa paz dos músculos se instila
para morrer no coração.

Rainer Maria Rilke

CAMPOS, Augusto de. Coisas e anjos de Rilke / Augusto de Campos. São Paulo: Perspectiva, 2001. (Coleção Signos; 30)

Wednesday, June 27, 2007

contemporâneo (Danto)

"Por muito tempo, creio eu, "arte contemporânea" teria sido apenas a arte que está sendo feita agora. O moderno, apesar de tudo, implica uma diferença entre o agora e o "ainda há pouco": a expressão não teria qualquer utilidade se as coisas permanecessem sempre e em ampla medida, as mesmas. Isso implica uma estrutura histórica e tem um sentido mais forte do que o termo "mais recente". "Contemporâneo", em seu sentido mais óbvio, significa simplesmente o que está acontecendo agora: a arte contemporânea seria a arte produzida por nossos contemporâneos. Certamente, ela não teria passado pelo teste do tempo. Mas para nós ela teria certo significado que mesmo a arte moderna que tivesse passado pelo teste não teria: ela seria a "nossa arte" de um modo particularmente íntimo. Mas como a história da arte evoluiu internamente, a contemporânea passou a significar uma arte produzida dentro de certa estrutura de produção jamais antes vista em toda a história da arte – creio eu. Da mesma forma que o "moderno" veio a denotar um estilo e mesmo um período, e não apenas arte recente, "contemporâneo" passou a designar algo mais do que simplesmente a arte do momento presente. Em meu ponto de vista, além do mais, designa menos um período do que o que acontece depois que não há mais períodos em alguma narrativa mestra da arte, e menos um estilo de fazer arte do que um estilo de usar estilos."

DANTO, Arthur. Após o fim da arte: arte contemporânea e os limites da história. São Paulo: Odysseus Editora, 2006 (p 12-13)

Thursday, June 07, 2007

Baudrillard e a hipertrofia estéril

"Há uma náusea peculiar nessa inutilidade prodigiosa. A náusea de um mundo que prolifera, que se hipertrofia e que não consegue dar à luz. Todas essas memórias, todos esses arquivos, toda essa documentação que não consegue dar à luz uma idéia; todos esses planos, programas, decisões que não conseguem dar à luz um fato; todas essas armas sofisticadas que não conseguem dar à luz uma guerra!"

BAUDRILLARD, Jean. A transparência do mal. Campinas, SP: Papirus, 1992. p. 39

Sunday, April 22, 2007

para gostar de Rancière: o mestre ignorante

(...) Toda palavra, dita ou escrita, é uma tradução que só ganha seu sentido na contra-tradução, na invenção das causas possíveis para o som que ouviu ou para o traço escrito: vontade de adivinhar que se apega a todos os indícios, para saber o que tem a lhe dizer um animal racional que a considera como a alma de um outro animal racional.

Talvez agora se compreenda melhor, igualmente, o escândalo que faz de relatar e de adivinhar as duas operações mestras da inteligência. Sem dúvida os dizedores de verdade e os espíritos superiores conhecem outras maneiras de transformar o espírito em matéria e a matéria em espírito. Compreende-se que eles as calem aos profanos. Para esses últimos, como para todo ser racional, resta, assim, esse movimento da palavra que é, ao mesmo tempo, distância conhecida e sustentada em relação à verdade e consciência da humanidade, desejosa de comunicar-se com outras e de verificar sua similitude com elas. "O homem é condenado a sentir e se calar ou, se quer falar, a falar indefinidamente, pois ele sempre tem o que retificar, para mais ou para menos, naquilo que acaba de dizer [...] porque o que quer que se diga, é preciso apressar-se em acrescentar: não é isso; e, como a retificação não é mais plena do que o primeiro dito, tem-se, nesse fluxo e refluxo, um meio perpétuo de improvisação".

Improvisar é, como se sabe, um dos exercícios canônicos do Ensino Universal. Mas é, antes ainda, o exercício da virtude primeira de nossa inteligência: a virtude poética. A impossibilidade que é a nossa de dizer a verdade, mesmo quando a sentimos, nos faz falar como poetas, narrar as aventuras de nosso espírito e verificar se são compreendidas por outros aventureiros, comunicar nosso sentimento e vê-lo compartilhado por outros seres sencientes. A improvisação é o exercício pelo qual o ser humano se conhece e se confirma em sua natureza de ser razoável, isto é, de animal "que faz palavras, figuras, comparações para contar o que pensa a seus semelhantes."A virtude de nossa inteligência está menos em saber, do que em fazer. "Saber não é nada, fazer é tudo." Mas esse fazer é, fundamentalmente, ato de comunicação. E, portanto, "falar é a melhor prova da capacidade de fazer o que quer que seja." No ato da palavra, o homem não transmite seu saber, ele poetiza, traduz e convida os outros a fazer a mesma coisa. Ele se comunica como artesão: alguém que maneja as palavras como instrumentos. O homem se comunica com o homem por meio de obras de sua mão, tanto quanto por palavras de seu discurso: "Quando o homem age sobre a matéria, as aventuras desse corpo tornam-se as aventuras da história do seu espírito." E a emancipação do artesão é, antes de mais nada, a retomada dessa história, a consciência de que sua atividade material é da natureza do discurso. Ele se comunica como poeta: um ser que crê que seu pensamento é comunicável, sua emoção, partilhável. Por isso, o exercício da palavra e a concepção de qualquer obra como discurso são um prelúdio para toda aprendizagem, na lógica do Ensino Universal. É preciso que o artesão fale de suas obras para se emancipar; é preciso que o aluno fale da arte que quer aprender. "Falar das obras dos homens é o meio de conhecer a arte humana."


RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante - cinco lições sobre a emancipação intelectual. Tradução de Lílian do Valle. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. p 95-97

Saturday, March 03, 2007

À sombra das raparigas em flor

- Tem sido bem tratado? – perguntou-me Bergotte. – Quem é o seu médico?
Disse-lhe que recebera a visita do Dr. Cottard, o que certamente se repetiria.
- Mas não é o que lhe convém – respondeu-me. – Não o conheço como médico. Mas vi-o em casa da Sra. Swann. É um imbecil. Supondo que isso não impeça de ser um bom médico, o que me custa crer, impede que seja um bom médico para artistas, para pessoas inteligentes. As pessoas como você precisam de médicos adequados, diria até de regimes, de medicamentos particulares. Cottard o aborrecerá, e baste o tédio para impedir que o tratamento seja eficaz. E além disso, esse tratamento não pode ser para você o mesmo que para um indivíduo qualquer. Três quartos do mal das pessoas inteligentes provêem da sua inteligência. É-lhes necessário pelo menos um médico que conheça esse mal. Como quer que Cottard possa tratá-lo? Ele previu a dificuldade de digerir os molhos, as perturbações gástricas, mas não previu a leitura de Shakespeare...

PROUST, Marcel. À sombra das raparigas em flor; tradução de Mário Quintana. São Paulo, Abril Cultural, 1894. pg. 117/118