logos boethikos

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Location: Rio de Janeiro, RJ, Brazil

Saturday, February 24, 2007

Narciso

Deitou-se e tentando matar a sede,
Outra mais forte achou. Enquanto bebia,
Viu-se na água e ficou embevecido com a própria imagem.
Julga corpo o que é sombra, e a sombra adora.
Extasiado diante de si mesmo, sem mover-se do lugar,
O rosto fixo, Narciso parece uma estátua de mármore de Paros.
Deitado, contempla dois astros: seus olhos e seus cabelos,
Dignos de Baco, dignos também de Apolo;
Suas faces ainda imberbes, seu pescoço de marfim,
A boca encantadora, o leve rubor que lhe colore a nívea pele.
Admira tudo quanto admiram nele.
Em sua ingenuidade deseja a si mesmo.
A si próprio exalta e louva. Inspira ele mesmo os ardores que sente
É uma chama que a si próprio alimenta.
Quantos beijos lançados às ondas enganadoras!
Para sustentar o pescoço ali refletido, quantas vezes
Mergulhou inutilmente suas mãos nas águas.
O mesmo erro que lhe engana os olhos, acende-lhe a paixão.
Crédulo menino, por que buscas, em vão, uma imagem fugitiva?
O que procuras não existe. Não olhes e desaparecerá o objeto do teu amor.
A sombra que vês é um reflexo de tua imagem.
Nada é em si mesma: contigo veio e contigo permanece.
Tua partida a dissiparia, se pudesses partir...
Inútil: sustento, sono, tudo esqueceu.
Estirado na relva opaca, não se cansa de olhar seu falso enlevo,
E por seus próprios olhos morre de amor.


Ovídio – Metamorfoses, 3, 414-428

Tuesday, February 20, 2007

o homem sem qualidades

Se existe senso de realidade, tem de haver senso de possibilidade.

Quem deseja passar bem por portas abertas deve prestar atenção ao fato de elas terem moldura firmes: esse princípio, segundo o velho professor sempre vivera, é simplesmente uma exigência do senso de realidade. Mas se existe senso de realidade, e ninguém duvida que ele tenha justificada existência, tem de haver também algo que se pode chamar de senso de possibilidade.

Quem o possui não diz, por exemplo: aqui aconteceu, vai acontecer, tem de acontecer isto ou aquilo; mas inventa: aqui, poderia, deveria ou teria de acontecer isto ou aquilo; e se lhe explicarmos que uma coisa é como é, ele pensa: bem, provavelmente também poderia ser de outro modo. Assim, o senso de possibilidade pode ser definido como capacidade de pensar tudo aquilo que também poderia ser, e não julgar que aquilo que é seja mais importante que aquilo que não é. Vê-se que as conseqüências dessa tendência criativa podem ser notáveis, e lamentavelmente não raro fazem parecer falso aquilo que as pessoas admiram, e parecer permitido o que proíbem, ou ainda fazem as duas coisas parecerem indiferentes. Essas pessoas com senso de possibilidade vivem, como se diz, numa teia mais sutil, feita de nevoeiro, fantasia, devaneio e condicionais; crianças com essa tendência são educadas para se libertarem dela, e lhes dizemos que tais pessoas são utopistas, sonhadores, fracos e presunçosos ou críticos mesquinhos.

Quando os queremos elogiar, também chamamos estes loucos de idealistas, mas obviamente tudo isso apenas se relaciona aos espécimes frágeis, que não podem entender a realidade, ou talvez fujam dela; portanto, pessoas nas quais a ausência de senso de realidade é uma falha. Mas o possível não abrange apenas os sonhos de pessoas de nervos fracos, e sim os desígnios divinos ainda desconhecidos. Uma experiência possível, ou uma verdade possível, não são iguais à experiência real e verdade real menos o valor da realidade; ao contrário, ao menos do ponto de vista de seus seguidores, têm em sai algo divino, um fogo, um vôo, um desejo de construção e uma utopia consciente, que não teme a realidade mas a trata como missão e invenção. Afinal a Terra não é velha, e aparentemente nunca foi muito abençoada. Se quisermos distinguir entre si as pessoas com senso de realidade e senso de possibilidade, basta pensar em determinada quantia de dinheiro. Tudo o que mil marcos contêm em possibilidades está ali contido, sem dúvida, não importa se possuímos os mil marcos ou não; o fato de o Sr. Eu ou o Sr. Você os possuírem acrescenta tão pouco aos mil marcos quanto acrescentaria a uma rosa ou a uma mulher. Mas um louco os enfiará na meia, dizem as pessoas realistas, e um empreendedor há de realizar alguma coisa com eles; até a beleza de uma mulher sofrerá indubitavelmente acréscimo ou perda segundo quem a possua. É a realidade que traz as possibilidades, e nada mais errado do que negar isso. Mesmo assim, no total ou na média serão sempre as mesmas possibilidades repetidas, até chegar uma pessoa para a qual uma coisa real não signifique mais do que o imaginado. Será ela quem dará sentido e destinação às novas possibilidades, quem há de provocar.

Mas um homem desses não é um caso muito claro. Já que, na medida em que forem devaneios ociosos, suas idéias são apenas realidades ainda não nascidas, naturalmente ele também tem senso de realidade; mas é um senso para a realidade possível, e chega ao seu objetivo muito mais devagar do que o senso para possibilidades reais, que a maioria das pessoas possui. Ele deseja a floresta toda, o outro quer as árvores; e floresta é algo difícil de expressar, enquanto árvores significam tanto e tantos metros cúbicos de determinada qualidade. Ou talvez se exprima isso melhor de outro modo, e o homem com senso comum de realidade se assemelha a um peixe que abocanha o anzol sem ver a linha, enquanto o homem com aquele senso de realidade, que também se pode chamar de senso de possibilidade, puxa uma linha pela água e não tem idéia de tem uma isca presa nela. Uma extraordinária indiferença em relação à vida que morde a isca traz consigo o perigo de fazer coisas totalmente aleatórias. Um homem sem senso prático – ele não apenas parece assim, mas é assim – é inconfiável e imprevisível no trato com as pessoas. Cometerá atos que lhe significam outra coisa do que para os demais, mas tudo o deixa tranqüilo, desde que possa ser sintetizado numa idéia extraordinária. Além disso, ele hoje ainda está muito longe de ser conseqüente. É bem possível que um crime que prejudique a outros lhe pareça apenas um erro social, cuja culpa não cabe ao criminoso mas à ordem social. Mas é de duvidar que, recebendo uma bofetada, ele a considere insulto da sociedade, ou tão impessoal quanto lhe pareceria a mordida de um cão; provavelmente, primeiro, ele devolverá a bofetada, depois pensará que não devia ter feito isso. E, por fim, se lhe roubarem uma amada, ele hoje ainda não conseguirá ignorar inteiramente a realidade desse fato e consolar-se dessa perda com uma emoção nova e surpreendente. Essa evolução ainda está em curso, e para o indivíduo representa ao mesmo tempo fraqueza e força.

E como a posse de qualidades pressupõe certa alegria por serem reais, podemos entrever como uma pessoa que não tenha senso de realidade nem em relação a ela própria pode sentir-se de repente um homem sem qualidades.

MUSIL, Robert. Um homem sem qualidades. Tradução de Lya Luft e Carlos Abbenseth. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989

Sunday, February 11, 2007

José e seus irmãos - a espera

"Uma espera, e nada mais, é uma tortura. Ninguém aguentaria ficar sentado sete anos ou sete dias, ou andar para baixo e para cima e esperar, como se pode aguentar talvez durante uma hora. Isto não pode dar-se nas unidades maiores de tempo, porque a espera se alonga e se esgarça, ficando mais densamente ocupada com o mero viver, de forma que durante longos períodos ela se torna vítima do puro esquecimento, isto é, se recolhe às profundezas da alma e já não está conscientemente presente. Assim uma meia hora de pura e simples espera é mais temível e uma prova mais cruel para a paciência do que uma espera que se estende por sete anos de vida. O que esperamos para daí a pouco nos afeta precisamente por causa da sua proximidade, como um estímulo muito mais penetrante e mais imediato do que se estivesse afastado; transforma a nossa paciência em impaciência arrasadora dos nervos e dos músculos, torna-nos mórbidos; não sabemos mesmo que fazer com os nossos membros; ao passo que uma espera de longo prazo nos deixa em paz; ela não somente permite, mas nos força a pensar em outras coisas e a fazer outras coisas, porque temos de viver. Tal é a origem desta surpreendente verdade: seja qual for o grau de ânsia com que esperamos, não o fazemos com mais dificuldade, porém mais facilmente, quanto mais distante no tempo ficar o alvo de nossas esperanças."
MANN, Thomas. José e seus irmãos. Tradução de Agenor Soares de Moura. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000

Tuesday, February 06, 2007

A Montanha Mágica

"O indivíduo pode visar numerosos objetivos pessoais, finalidades, esperanças, perspectivas, que lhe dêem impulso para grandes esforços e elevadas atividades; mas, quando o elemento impessoal que o rodeia, quando o próprio tempo, não obstante toda a agitação exterior, carece no fundo de esperanças e perspectivas, quando se lhe revela como desesperador, desorientado e falto de saída, e responde com um silêncio vazio à pergunta que se faz conscientemente ou inconscientemente, mas em todo caso se faz, a pergunta pelo sentido supremo, ultrapessoal e absoluto, de toda atividade e todo esforço - então se tornará inevitável, justamente entre as naturezas mais retas, o efeito paralisador desse estado de coisas, e esse efeito será capaz de ir além do domínio da alma e da moral, e de afetar a própria parte física e orgânica do indivíduo. Para um homem se dispor a empreender uma obra que ultrapassa a medida das absolutas necessidades, sem que a época saiba uma resposta satisfatória à pergunta "Para quê?", é indispensável ou um isolamento moral e uma independência, como raras vezes se encontram e têm um quê heróico, ou então uma vitalidade muito robusta."

MANN, Thomas. A Montanha Mágica. Tradução de Herbert Caro. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2000

Jens Peter Jacobsen

“No fundo, não havia mais do que o desejo um tanto doentio de tomar consciência de si, a ambição de encontrar a si mesma, que tantas vezes se agita numa jovem de inteligência acima do comum. Mas o pior é que não havia no seu círculo de relações uma só pessoa que servisse de orientação e de medida para o seu talento, não se encontrava ninguém da sua natureza; de modo que ela se habituou a se considerar como algo estranho, inédito, uma espécie de planta tropical nascida sob céu inclemente, contrariada no seu crescimento; num ar mais ameno, sob um sol mais forte, ela teria podido lançar talos eretos com uma floração maravilhosamente rica e brilhante. Seria esse o seu verdadeiro caráter, pensava, se tivesse um ambiente propício, e mil vezes sonhava com a terra clara dos seus sonhos, e no anseio por seu rico e oculto eu interior ela se consumia e se esquecia – como é tão fácil esquecer – que os mais amáveis sonhos, as mais sérias aspirações ao florescimento não acrescentavam uma só polegada ao crescimento do espírito humano.”

JACOBSEN, Jens Peter. Niels Lyhne. São Paulo, Cosac & Naify Edições, 2000

logos boethikos

"Os hypomnemata não deveriam ser encarados como um simples auxiliar de memória, que poderiam consultar-se de vez em quando, se a ocasião se oferecesse. Não são destinados a substituir-se à recordação porventura desvanecida. Antes constituem um material e um enquadramento para exercícios a efectuar frequentemente: ler, reler, meditar, entreter-se a sós ou com outros, etc. E isto com o objetivo de os ter, segundo uma expressão que reaparece com frequência, procheiron, ad manum, in promptu. "À mão" portanto, não apenas no sentido de poderem ser trazidos à consciência, mas no sentido de que se deve poder utilizá-los, logo que necessário, na acção. Trata-se de constituir para si próprio um logos boethikos, um equipamento de discursos a que se pode recorrer, susceptíveis - como diz Plutarco - de erguerem eles próprios a voz e de fazerem calar as paixões, como o dono que, com uma só palavra, sossega o alarido dos cães."

A escrita de si
in FOUCAULT, Michel. O que é um autor?. Lisboa, Vega, 1992.